BURNOUT MATERNO: DOAÇÃO DESMEDIDA NÃO É GARANTIA DE ÊXITO. COMO MEDIR O QUE É EXCESSIVO OU NECESSÁRIO

  

Maternidade e Exaustão (Foto: Reprodução/ Photographed by Raymond Meier, Vogue, November 2003)

(Foto: Reprodução/ Photographed by Raymond Meier, Vogue, November 2003)

Burnout materno: doação desmedida não é garantia de êxito. Como medir o que é excessivo ou necessário


  • FILIPE BATISTA (@FILIPEBATISTAPSIQUIATRIA)
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"Agimos na contramão do que pretendemos ao naturalizar a tirania de cobranças e expectativas irreais e excessivas sobre a maternidade", reflete o psiquiatra Filipe Batista

A apresentadora Fernanda Lima publicou em sua rede social, na última segunda-feira (6), um desabafo sobre a rotina exaustiva de cuidado com os filhos. Ela não está sozinha. Compõe uma legião de mulheres cansadas, sugadas e subtraídas pelo acúmulo de papéis e cobranças cada vez maior. Fernanda lembrou que sua posição de privilégio não é suficiente para livrá-la do esgotamento que muitas mulheres estão submetidas, e que contar com o apoio de outras mulheres significa que essas precisaram deixar seus filhos sob o cuidado de outras tantas.

O papel dos homens nessa equação desequilibrada é crucial. Sem uma divisão honesta das tarefas domésticas não avançaremos na discussão. Sobre esse fosso desigual não existe questionamento e ainda há muito a progredir. Presumimos que Rodrigo Hilbert está no pódio dos homens empenhados em desconstruir os modelos tradicionais de masculinidade e assumir a paternidade em sua integralidade. Embora ainda distantes de uma partilha de ônus justa, cresce o número de homens que se engajam ativamente na intensa e exaustiva rotina de cuidados que toda criança requer. Contudo, mesmo quando a mulher encontra esse parceiro, a queixa não se apaga, ainda que dilua.

A opressão histórica e estrutural às mulheres é tamanha, que novos mecanismos de massacre surgem e reinventam-se quando outros parecem sanados. O esforço heroico de tentar acertar a qualquer custo no exercício da parentalidade também leva à enorme exaustão e frustração. Trata-se de uma geração que se cobra demasiadamente e que ostenta a obstinação, quando não, um certo orgulho, de tentar dar conta do que caberia a uma comunidade inteira. Embora já façam bastante — mais do que seus pais fizeram — sentem-se insuficientes.

Performance, a maldita palavra de ordem atual, invadiu também o ideal de jovens casais que procuram dar tudo de si por seus filhos. Essa doação desmedida, porém, além de levar mães e pais ao esgotamento e causar sofrimento, não é garantia de êxito em nenhum aspecto. Já dizia o sempre atual psicanalista inglês Winnicott, pais e mães suficientemente bons são aqueles capazes de oferecer meios, sem excessos, para o desenvolvimento das potencialidades da criança. Mas como medir o que é excessivo ou necessário quando tomados por um amor capaz de embotar a visão até dos mais lúcidos?

Os primeiros anos de uma criança podem ser especialmente difíceis. Um bebê possui necessidades afetivas e práticas que dependem do cuidado de outra pessoa. Leva tempo até que comece a desenvolver sua autonomia, ainda que incipiente, e os pais alcancem novamente uma certa homeostase. Esse período de latência da mãe e do pai até o reencontro consigo é muito particular e varia para cada um, conforme sua realidade externa e subjetiva. Mas quando o mal-estar persiste, a despeito da passagem do tempo e dos inúmeros esforços para remediá-lo, é hora de buscar ajuda. Aliás, contar com apoio é imprescindível sempre que pensamos no cuidado da criança.

Quando a mãe ou o pai saem de cena, hábitos aparentemente insolúveis podem começar a se dissolver mais facilmente. Uma noite de sono ininterrupta é o elixir que regata a sanidade e dignidade de pais desesperados. Além disso, rotina e regras bem estabelecidas ajudam os pais a reencontrar algum sentido no caos. Crianças demandam limite. Ele aponta uma direção para que possam explorar e descobrir, com confiança e amparo. Negociar e frustrar seu filho não é apenas um recurso para ordem na casa, possui também função educativa. O entendimento de que a vida é composta por êxitos e revezes é uma importante herança a se deixar aos filhos. Tentar encobrir essa verdade, com esforços hercúleos para não traumatizar, não machucar, não causar danos, já é um enorme dano em si.

Cada um tem a liberdade de exercer sua maternidade e paternidade da maneira que pode e lhe convém, a pergunta é: suas escolhas estão em sintonia com seus próprios valores ou causando mais sofrimento? O intuito de cercar os filhos com cuidados excessivos, privando-os de toda sorte de dificuldade ou trauma é vão. O trauma é uma garantia da qual nenhuma mãe ou pai, mesmo os mais dedicados e afetuosos, serão capazes evitar em seus filhos. Claro que isso não os exime da responsabilidade de oferecer à criança um ambiente e instrumentos minimamente favoráveis para o seu desenvolvimento, o que é diferente de dedicação irrestrita e escravizante. Se mesmo a pequena, embora crescente, fatia de casais que procuram ajudar-se mutuamente, não está isenta de tensões, conflitos e esgotamento, então onde se encontra o nó exatamente?

As questões são diversas em cada caso. Uma delas diz respeito a desilusão que as pessoas experimentam na medida em que, tomadas integralmente pelos cuidados com filho e o trabalho, não conseguem mais reconhecer a si próprias, e começam a se ressentir e se culpar. Será que estamos exigindo de nós mesmos mais do que o necessário? Agimos na contramão do que pretendemos ao naturalizar a tirania de cobranças e expectativas irreais e excessivas sobre a maternidade. Reconhecer é diferente de enaltecer. Se insistimos aplaudir uma mulher exaurida pelo excesso de de tarefas que desempenha, incorremos no risco de alimentar mais uma opressão sobre as mulheres.

Não se cria um filho sozinho ou a dois, é preciso rede de apoio. Não estamos discutindo suficientemente políticas públicas de amparo às famílias, creches em período integral, licença paternidade, saúde mental da mulher. A precária participação dos homens na divisão das tarefas domésticas e cuidado dos filhos ainda segue como o principal nó a ser desatado. O relato honesto de Fernanda Lima só prova que ter um Rodrigo Hilbert para chamar de seu ainda não é garantia do tão sonhado e merecido descanso de toda mãe exausta. Frustrante para as mulheres. Trabalho árduo para os homens.

Fonte:https://vogue.globo.com/Wellness/noticia/2021/12/burnout-materno-doacao-desmedida-nao-e-garantia-de-exito-como-medir-o-que-e-excessivo-ou-necessario.html

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